Propriedade, Direitos e Liberdade
Os Libertários tendem a concordar num vasto leque de políticas e princípios. Não obstante, não é fácil encontrar um consenso final sobre qual a característica categórica do libertarianismo, ou sobre aquilo que o distingue de outras teorias e sistemas políticos.
Proliferam várias formulações. Diz-se que o libertarianismo consiste sobre os direitos individuais, o mercado livre, do capitalismo, a justiça, ou do princípio da não-agressão. Nenhuma desta serve, contudo. O capitalismo e mercado livre descrevem as condições cataláticas que surgem ou que são permitidas surgir numa sociedade libertária, mas não englobam outros aspectos do libertarianismo. E os direitos individuais, a justiça e a agressão colapsam perante os direitos de propriedade. Como explica Murray Rothbard, os direitos individuais são direitos de propriedade. E a justiça é apenas dar a alguém o que lhe é devido, e para tal ocorrer, dependerá de quais são os seus direitos.
O princípio da não-agressão está subordinada aos direitos de propriedade, pois a agressão depende daquilo que são os nossos direitos (de propriedade). Se alguém me ataca, é agressão porque tenho o direito de propriedade sobre o meu corpo. Se eu tirar uma maçã a alguém, é transgressão – agressão – apenas porque esse alguém possui essa maçã. Não podemos reconhecer um acto de agressão sem implicitamente atribuir um direito de propriedade correspondente à vítima.
Vemos assim, pois, que o capitalismo e o mercado livre são demasiado restritos, e a justiça, os direitos individuais e a agressão, todos se resumem, ou são definidos em termos de, aos direitos de propriedade. O que são direitos de propriedade, pois? É isto o que diferencia o libertarianismo de todas as outras filosofias políticas – a de que apenas nós favorecemos os direitos de propriedade, e os outros não? É óbvio que esta alegação é insustentável.
Afinal de contas, o direito de propriedade é simplesmente o direito exclusivo ao controlo de um recurso escasso. Os direitos de propriedade especificam quais são as pessoas que possuem – isto é, têm o direito de controlar – os vários recursos escassos numa dada região ou jurisdição. E no entanto toda e qualquer teoria política avança uma qualquer teoria de propriedade. Nenhuma das várias formas de socialismo nega os direitos de propriedade, cada versão irá especificar um proprietário para cada recurso escasso. Se o estado nacionaliza uma indústria, declara-se este como o proprietário destes meios de produção. Quando o estado decreta a tributação, está implicitamente a declarar-se o proprietário dos fundos subtraídos. Se a minha terra é transferida para um empreiteiro privado através dos estatutos da lei da expropriação (eminent domain, nos EUA), este empreiteiro é agora o proprietário. Se a lei permite a um funcionário alegadamente vítima de discriminação racial um processo ao seu patrão por um montante monetário, aquele será o proprietário desse montante monetário.
A protecção e o respeito pelos direitos de propriedade não são únicos ao libertarianismo. O que é distintivo do libertarianismo são as suas normas particulares de atribuição da propriedade: a sua visão a respeito de quem é o proprietário de cada um dos recursos contestados, e como tal é determinado.
A Propriedade dos Corpos
Um sistema de direitos de propriedade atribui a um dono particular a cada recurso escasso. Estes recursos incluem obviamente os recursos naturais tais como a terra, os frutos das árvores, e assim por diante. Os objectos encontrados na natureza não são os únicos recursos escassos, contudo. Cada actor humano possui, controla, é identificado e associado a um único corpo humano, o que é também um recurso escasso. Tanto os corpos humanos como os não humanos são recursos escassos desejados pelos actores para o seu uso como meios na prossecução de diversos objectivos.
Desta forma, qualquer sistema ou teoria política terá que atribuir direitos de propriedade aos corpos humanos bem como às coisas externas. Vamos considerar em primeiro lugar as normas de atribuição de propriedade libertárias, e a noção correspondente de agressão no que se refere aos corpos. Os Libertários asseveram veementemente o “princípio da não-agressão”. Como Ayn Rand disse, “Enquanto os homens desejarem viver em conjunto, nenhum homem poderá iniciar – ouvem-me? Nenhum homem poderá principiar – o uso da força física contra outros.” Ou, como Rothbard diz:
“O credo libertário repousa sobre um axioma central: o de que nenhum homem ou grupo de homens pode agredir a pessoa ou propriedade de qualquer outro. A este poderemos chamar o “axioma da não-agressão”. A “agressão” define-se como o uso ou a ameaça do uso da força física contra a pessoa ou propriedade de outrém. A agressão é, pois, sinónimo de invasão. “
Por outras palavras, os libertários sustentam que a única forma de violação de direitos será a iniciação da força – ou seja, através de um acto de agressão. (Os libertários defendem também que, embora a iniciação do uso da força sobre o corpo de alguém seja inadmissível, a força usada em resposta à agressão – tal como a força defensiva, restitutiva ou retaliatória/punitiva – é justificável).
Agora, em relação ao corpo é óbvio o que é agressão: a invasão das fronteiras do corpo de alguém, usualmente chamado de ofensas corporais, ou em geral, o uso do corpo de alguém sem o seu consentimento. A própria noção de agressão interpessoal pressupõe o direito de propriedade dos corpos – ou mais em particular, que cada pessoa, pelo menos prima facie, é o proprietário do seu próprio corpo.
As filosofias não libertárias têm uma concepção diferente. Cada pessoa têm alguns direitos limitados sobre o seu próprio corpo, mas não direitos completos ou exclusivos. A sociedade – ou o estado, supostamente o agente da sociedade – tem também certos direitos aos corpos de cada cidadão. Esta escravidão parcial está implícita nas acções do estado tais como por exemplo a tributação, o recrutamento e a interdição de drogas.
O libertário afirma que cada pessoa é o proprietário pleno do seu corpo: esta tem o direito de controlar o seu próprio corpo, o de decidir sobre se irá ou não ingerir narcóticos, o de se juntar a um exército, e assim por diante. Aqueles vários não libertários que patrocinam essas proibições estatais defendem necessariamente, contudo, que o estado, ou a sociedade, é, no mínimo, o proprietário parcial do corpo daqueles sujeitos àquelas leis – ou até mesmo o proprietário pleno no caso da incorporação ou de “criminosos” não agressores encarcerados para o resto da vida. Os libertários acreditam na posse própria do seu corpo (self-ownership). Os não libertários – estatistas – de todos os formatos advogam uma qualquer forma de escravidão.
A Posse Própria do Nosso Corpo (self-ownership) e a Obstrução ao Conflito
Sem direitos de propriedade, existirá sempre a possibilidade de conflito sobre os recursos (escassos) impugnáveis. Através da atribuição de um proprietário a cada recurso, os sistemas legais tornam possível o uso livre de conflitos desses recursos, ao estabelecer fronteiras visíveis de forma a que os não-proprietários as possam evitar. O libertarianismo não patrocina, contudo, uma qualquer norma de atribuição de propriedade. Promove a self-ownership sobre a other-ownership (a escravatura).
O libertário procura regras de atribuição de propriedade porque valoriza ou aceita várias normas base, tais como a justiça, a paz, a prosperidade, a cooperação, a prevenção de riscos, e a civilização. A perspectiva libertária é a de que a self ownership é a única norma de atribuição de propriedade compatível com estas normas base; está implícita por aquelas.
Como o Prof. Hoppe demonstra, a atribuição de propriedade a um dado recurso não deverá ser aleatória, arbitrária, particularista ou enviesada, se pretende realmente ser uma norma proprietária que pretende servir a função de evitar conflitos. O título de propriedade terá que ser atribuído a um dos requerentes concorrentes baseado na “existência de um elo objectivo, intersubjectivamente distinguível entre o proprietário e o recurso em causa”. No caso do corpo de alguém, é uma união única entre a pessoa e o seu corpo – o seu controlo directo e imediato sobre o seu corpo, e o facto de que, pelo menos em certo sentido, um corpo é essa pessoa e vice versa – o que constitui a união objectiva suficiente para dar a essa pessoa uma reivindicação ao seu corpo superior a terceiras partes reclamantes.
E para mais, qualquer estranho que reivindique o corpo de alguém não poderá negar esta ligação objectiva e o seu estatuto especial, pois esse pressupõe necessariamente o mesmo no seu caso. E tal é assim porque, ao buscar o domínio sobre o corpo de outrém, terá que pressupor a propriedade do seu próprio corpo. Ao fazê-lo, o estranho demonstra de facto certa relevância a esta ligação, mesmo que (ao mesmo tempo) desrespeita o significado da ligação do outro ao seu corpo.
O libertarianismo reconhece que apenas a regra da self ownership é universalizável e compatível com os objectivos de paz, cooperação e ao impedimento de conflitos. Reconhecemos nós que cada pessoa é, prima facie, proprietária do seu corpo porque, devido à relação e ligação únicas com o seu próprio corpo – o seu controlo directo e imediato sobre este – este terá uma melhor pretensão ao seu corpo do que qualquer outra pessoa.
A Propriedade sobre as Coisas Externas
Os libertários aplicam um raciocínio semelhante no caso dos outros recursos escassos – nomeadamente, às coisas externas do mundo que, ao contrário dos corpos, seriam, a certa altura, não apropriadas. No caso dos corpos, a ideia de que a agressão é inadmissível implica imediatamente a posse própria de seu corpo (self ownership). No caso de objectos externos, contudo, teremos que identificar quem é o proprietário antes que possamos determinar aquilo que constitui agressão.
Como no caso dos corpos, os seres humanos necessitam de usar as coisas externas como meios para atingir objectivos vários. Como estas coisas são escassas, existe também potencial para o conflito. E, como no caso com os corpos, os libertários favorecem a atribuição dos direitos de propriedade por forma a permitir o uso pacífico, livre de conflitos e produtivo desses recursos. Assim, como no caso com os corpos, a propriedade é atribuída à pessoa com a melhor pretensão ou ligação a um dado recurso escasso – com o padrão da “melhor pretensão” baseada nos objectivos de viabilizar o uso de recursos e uma interacção humana livre, pacífica e livre de conflitos.
Mas ao contrário dos corpos humanos, no entanto, os objectos externos não são partes de uma identidade de alguém, não são controlados pela nossa vontade, e – de forma significativa – não são no início propriedade de ninguém. Aqui, o libertário compreende que a ligação objectiva relevante é a apropriação – a transformação ou a delimitação de um dado recurso escasso, o homestead 1 de Locke, o uso primeiro ou a posse da coisa. Sob esta abordagem, o primeiro (anterior) usuário de uma coisa previamente não usada tem, prima facie, uma melhor pretensão do que um segundo (posterior) reclamante, somente por virtude de aquele chegar mais cedo.
Por que razão é a apropriação o elo relevante à determinação da propriedade? Primeiro, devemos ter presente que a questão a respeito destes recursos escassos é: quem é o proprietário do recurso? Recorde-se que propriedade é o direito de controlar, usar, ou possuir, enquanto que a posse é o controlo presente – “a autoridade factual que uma pessoa exerce sobre uma coisa corpórea”. A questão não é a de saber quem tem a posse física; é sobre quem tem propriedade.
Assim, a interrogação sobre que é o proprietário de um recurso pressupõe a distinção entre propriedade e posse – entre o direito de controlar, e o controlo presente. E a resposta terá que ter em conta a natureza das coisas previamente não apropriadas – nomeadamente, o facto de que estas terão que ser em determinada altura tornar-se propriedade de um primeiro proprietário.
A resposta terá também que tomar em linha de conta o objectivo pressuposto daqueles que buscam esta resposta: normas que permitam o uso dos recursos livre de conflito. Por esta razão, a resposta não poderá ser quem for capaz de tomar um dado recurso é o proprietário. Manter esta visão é adoptar o sistema do-mais-forte-é-o-mais-certo, onde a propriedade colapsa em posse, à falta de melhor distinção. Tal sistema, longe de evitar o conflito, torna o conflito inevitável.
Em vez de uma abordagem da força-faz-o-mais-certo, da análise descrita em cima é óbvio que a propriedade pressupõe a distinção anterior-posterior: a quem quer que seja que um dado sistema especifique como o proprietário do recurso, este tem uma melhor reivindicação do que os todos os reclamantes posteriores. Se não o é, então este será meramente o actual possuidor ou usuário. Se é supostamente um proprietário através do princípio da força-faz-o-mais-certo, no qual não existe algo como propriedade, tal contradiz os pressupostos da própria averiguação. Se o primeiro proprietário não tem uma melhor reivindicação do que todos posteriores, então este não será o proprietário, mas meramente o possuidor, e não existirá algo como propriedade.
Em geral, a reivindicação de posteriores são inferiores àquelas dos possuidores ou pretendentes anteriores, que ou homesteaded a terra, ou que podem fazer regressar o seu título de propriedade ao homestader ou a um proprietário antecedente. A importância crucial da distinção anterior-posterior para a teoria libertária é a razão por que o Prof. Hoppe repetidamente a evidencia nas suas obras.
Assim, a posição libertária sobre os direitos de propriedade é a de que, de forma a permitir o uso de recursos produtivo e livre de conflitos, os títulos de propriedade de recursos específicos são atribuídos a proprietários específicos. Como foi referido em cima, contudo, a atribuição de títulos não poderá ser aleatória, arbitrária, ou particularística; de facto, essa atribuição terá que ser baseada na “existência de um elo objectivo, intersubjectivamente distinguível entre o proprietário” e o recurso reivindicado. Como pode ser visto pelas considerações expostas em cima, o elo de ligação é a transformação física ou a delimitação feita pelo homesteader original, ou a uma corrente de títulos registrável até aquele.
Coerência e Princípios
Não são apenas os libertários os únicos civilizados. A maior parte das pessoas valorizam algumas das considerações feitas em cima. Aos seus olhos, uma pessoa é proprietária do seu corpo – normalmente. Um homesteader possui o recurso que apropria – a menos que o estado lho tire “através do aparelho da lei”. Eis a diferença principal entre libertários e não libertários: os Libertários opõem-se coerentemente à agressão, definida em termos de uma invasão das fronteiras de propriedade, onde os direitos de propriedade são compreendidos como sendo atribuídos na base da self ownership no caso dos corpos. E no caso das outras coisas, os direitos são entendidos na base de uma posse prévia e de uma transferência contratual de títulos ou de homesteading.
Esta estrutura de direitos é motivada pela valorização libertária consistente e com princípios da cooperação e da interacção pacífica – em suma, do comportamento civilizado. Um paralelo à visão de Mises sobre a acção humana agora poderá ser revelador. De acordo com Mises, a acção humana busca ao alívio de alguma inquietude sentida (ou mal estar, ou desassossego). Assim, são empregues meios, de acordo com o entendimento do actor das leis causais, para atingir certos fins – em última análise, à remoção da inquietude.
O homem civilizado sente-se mal perante disputas violentas com outros. Por um lado, ele quer, por uma qualquer razão prática, controlar um dado recurso escasso e usar violência física contra outra pessoa, se necessário, para atingir esse controlo. Por outro lado, também quer evitar um uso errado de força. O homem civilizado, por qualquer razão, sente relutância, inquietude, face a uma interacção violenta com os seus semelhantes. Talvez tenha relutância em confrontar de forma violenta outros sobre certos objectos pois tenha empatia com estes. Talvez o instinto da cooperação seja um resultado da evolução social.
Existem pessoas cujo único objectivo é a melhoria da condição do seu ego. Existem outros cuja consciência dos problemas do seu semelhante causa tanto desconforto ou até mesmo um desconforto ainda maior do que as suas próprias necessidades.
Seja qual for a razão, é devido a este mal-estar que, quando existe um potencial conflito violento, o homem civilizado procura uma justificação para o controlo forçado de um recurso escasso que deseja mas ao qual se opõe outra pessoa. A empatia – ou seja o que for que incentiva o homem a adoptar as normas base libertárias – dá origem a uma certa forma de mal estar ou inquietude, o qual dá origem à acção ética.
O homem civilizado poderá ser caracterizado como aquele que busca justificação para o uso da violência interpessoal. Quando surge a necessidade inevitável de se envolver em violência – em defesa da sua vida e propriedade – o homem civilizado necessita de uma justificação. Naturalmente, como esta busca pela fundamentação é feita por pessoas inclinadas à razão e à paz (afinal, a fundamentação, ou justificação, é uma actividade pacífica que toma lugar necessariamente durante uma locução), aquilo que procuram são regras justas, potencialmente aceitáveis por todos, fundadas na natureza das coisas, e universalizáveis, as quais permitam um uso dos recursos livre de conflitos.
Os princípios libertários dos direitos de propriedade emergem como os únicos que preenchem este critério. Assim, se o homem civilizado é aquele que procura justificação para o uso da violência, o libertário é aquele que é verdadeiro nesta diligência. Tem uma oposição inata, profunda, e de princípio à violência, e um compromisso igualmente profundo face à paz e à cooperação.
Pelas razões acima mencionadas, poderá dizer-se do libertarianismo que é a filosofia política que defende de forma coerente as normas sociais que visam à promoção da paz, à prosperidade, e à cooperação. Reconhece que apenas as regras que satisfazem as normas base civilizadas são o princípio da self ownership e o princípio de Locke, o homestead, aplicados tão consistentemente quanto possível.
E como também o defendo noutro lado, por que o estado comete necessariamente agressão, o libertário coerente, ao opor-se à agressão, é também um anarquista.
- – Princípio de HOMESTEAD, (Apropriação Original2) ou Princípio Do Valor da Propriedade de John Locke. Do DIREITO NATURAL: A apropriação original dos recursos à face da terra é a fundamentação e a explicação da existência da propriedade privada – que, note-se, ao contrário da opinião da maioria dos autores, a propriedade privada não é uma “convenção”, pois não resulta de qualquer escolha, mas é, sim, uma lei universal.
- Ensaio original em PDF em inglês aqui.