A história das línguas do mundo é, em grande medida, uma história de perda e declínio. Por volta de 8000 a.C., os linguistas estimam que poderiam existir mais de 20 000 línguas.1 Hoje, o número situa-se em 6 909 e está a diminuir rapidamente.2 Em 2100, é bastante realista esperar que metade dessas línguas tenha desaparecido, com os seus últimos falantes mortos, as suas palavras talvez registadas nalgum arquivo empoeirado algures, mas, mais provavelmente, inteiramente não documentadas.3
O que causa isto? Como é que alguém se torna o último falante de uma língua, como aconteceu com Boa Sénior antes da sua morte em 2010? Como é que as línguas passam a ser faladas apenas por idosos e não por crianças? Há várias más respostas a estas questões. Uma delas é a globalização, um termo nebuloso usado de forma depreciativa para designar quer a especialização económica global e a divisão do trabalho, quer a adopção de práticas culturais semelhantes em todo o globo.
O problema da globalização, neste último sentido, é que ela é o resultado, e não a causa, do declínio linguístico. Outra resposta errada, abrangida pela primeira definição de globalização, é o comércio e o capitalismo. O comércio não mata línguas, tal como não mata qualquer outro tipo de prática cultural, como a pintura ou a música. O comércio potencia a troca de práticas culturais e promove a sua proliferação; não as diminui, em regra. Historicamente, o comércio regional fomentou a criação de muitas novas lingua francas, e o resultado tende a ser um bilinguismo estável e saudável entre a língua local e a língua regional de comércio. Só quando o Estado adopta uma língua de comércio como língua oficial e, num ímpeto de nacionalismo linguístico, a impõe aos seus cidadãos, é que as línguas de comércio se tornam “línguas assassinas”.
Mais importante ainda, o que ambas as respostas anteriores ignoram é que falar uma língua global ou uma língua de comércio não exige o abandono da língua materna. Em média. uma pessoa neste planeta fala três ou quatro línguas. Terão os jovens no Japão de abandonar o japonês para participarem no comércio global em inglês? Terá uma executiva empresarial na Alemanha de deixar de falar alemão com os seus filhos para ser bem-sucedida no seu escritório de língua inglesa? Por que razão haveria alguém de abdicar de uma língua em favor de outra, quando pode simplesmente falar ambas?
A verdade é que a maioria das pessoas não “abandona” as línguas que aprende na juventude. Tendem a falar essas línguas ou até morrerem ou até deixarem de ter com quem as falar. As línguas perdem-se, antes, quando o processo de transmissão intergeracional é alterado ou interrompido. Para eliminar uma língua, é preciso entrar no lar e impedir os pais de falarem a sua língua nativa aos filhos. Perante um cenário tão absurdo, regressamos à nossa pergunta — como poderia isto acontecer?
Uma boa resposta é a urbanização. Se um Gikuyu e um Giryama se encontrarem em Nairobi, dificilmente falarão a língua materna um do outro, mas é muito provável que falem uma ou ambas as línguas de comércio no Quénia — o suaíli e o inglês. Os seus filhos poderão aprender algumas palavras dispersas das línguas de herança com os pais, mas, à terceira geração, quaisquer vestígios dessas línguas na família terão provavelmente desaparecido. Noutros casos, comunidades extremamente rurais são atraídas para o estilo de vida relativamente mais fácil das cidades, até que, por vezes, aldeias inteiras são abandonadas. E isto não é um fenómeno recente. O primeiro caso de extinção linguística em massa ocorreu provavelmente durante a Revolução Agrária (Neolítica), quando a humanidade adoptou a agricultura, abandonou o nomadismo e criou povoações permanentes. À medida que o tamanho dessas comunidades crescia, crescia também a língua que falavam. Contudo, ao longo da maior parte da história — e ainda hoje em muitas regiões do mundo — 500 ou menos falantes por língua foi a norma. Tal como as pessoas que as falavam, essas línguas estavam em constante mutação. Nenhuma língua podia crescer muito, porque a comunidade que a falava só podia crescer até certo ponto antes de se fragmentar. A língua seguia o mesmo destino, tornando-se rapidamente em duas línguas. As povoações permanentes alteraram tudo isto, e populações cada vez maiores passaram a poder falar de forma estável a mesma língua.
De forma notável, para alguém com pouco ou nenhum conhecimento da linguística do seu tempo, Mises já compreendia estas ligações entre declínio linguístico, crescimento comunitário e troca económica nos seus primeiros escritos:
Em tempos primitivos, toda a migração provoca não apenas separação geográfica, mas também intelectual, de clãs e tribos. As trocas económicas ainda não existem; não há contacto que possa contrariar a diferenciação e o surgimento de novos costumes. O dialecto de cada tribo torna-se cada vez mais diferente daquele que os seus antepassados falavam quando ainda viviam juntos. A fragmentação dos dialectos prossegue sem interrupção. Os descendentes já não se compreendem uns aos outros.… Uma necessidade de unificação linguística surge então de dois lados. Os primórdios do comércio tornam necessária a compreensão entre membros de diferentes tribos. Mas essa necessidade é satisfeita quando intermediários individuais no comércio adquirem o domínio linguístico necessário.4
Assim, a urbanização é um factor importante na morte das línguas. É certo que as características maravilhosas das cidades que atraem os imigrantes — maiores economias de escala, redução dos custos de procura, aumento da divisão do trabalho — são todas possibilitadas pelo capitalismo, e, neste sentido, as línguas podem morrer por razões económicas. Mas este é precisamente o tipo de morte linguística que não nos deveria preocupar (a menos que se seja linguista, como eu), porque a urbanização não é mais do que a demonstração das preferências de milhões de pessoas que desejam aproveitar todos os benefícios extraordinários que as cidades têm para oferecer.
Em suma, estas pessoas fazem a escolha consciente de abandonar um ambiente onde existem efeitos de rede e benefícios sociológicos associados ao uso da sua língua nativa, e trocá-lo por um leque mais amplo de possibilidades económicas, mas onde não existem tais benefícios sociais para o uso dessa língua. Se esta fosse a única causa da morte das línguas — ou mesmo a principal — pouco mais haveria a dizer. Pois, como Mises afirma de forma tão clara,
Uma vez que ninguém está em posição de substituir os seus próprios juízos de valor pelos do indivíduo que age, é vão julgar os fins e as volições de outras pessoas. Nenhum homem está qualificado para declarar o que tornaria outro homem mais feliz ou menos descontente. O crítico ou nos diz aquilo que ele próprio visaria se estivesse no lugar do seu semelhante; ou, numa arrogância ditatorial, dispondo levianamente da vontade e das aspirações do seu semelhante, declara qual a condição desse outro homem que melhor lhe convém a ele, o crítico.5
Demasiadas pessoas bem-intencionadas substituem apressadamente as suas valorações pelas dos últimos falantes de línguas indígenas desta forma. Se dependesse delas, esses falantes resignar-se-iam à miséria e à pobreza, privados da participação nas economias avançadas do mundo, para que a sua língua pudesse ser transmitida. É certo que esses próprios falantes caem frequentemente vítimas da ideologia errada de que uma língua necessariamente desloca ou interfere com outra. Embora o Departamento de Educação da África do Sul esteja, por exemplo, a tentar desenvolver materiais de ensino nas línguas africanas locais, muitos pais opõem-se; querem que os seus filhos sejam ensinados apenas em inglês. Em Dominica, os pais vão ainda mais longe e recusam-se até a falar a língua local, o patwa, aos seus filhos.6 Se tivessem consciência da falsidade desta noção de deslocamento linguístico, talvez fossem menos rápidos a deixar de falar a sua língua aos filhos. Mas a decisão é, em última instância, deles, e apenas deles.
A urbanização, contudo, não é a única causa da morte das línguas. Há outra que, lamento dizê-lo, quase nenhum dos linguistas que trabalham com línguas ameaçadas considera seriamente: o estado. O estado é a única entidade capaz de penetrar no lar e alterar coercivamente o processo de socialização linguística de forma institucionalizada.
Como? O método tradicional foi simplesmente matar ou remover populações indígenas e minoritárias, como aconteceu tão recentemente quanto 1923 nos Estados Unidos, no último conflito das Guerras Indígenas. Mais recentemente, isto ocorre por meios indirectos — intencionais ou não — sendo o principal deles a escolaridade estatal obrigatória.
Não há ataque mais pernicioso às práticas culturais das populações minoritárias do que uma educação obrigatória padronizada, anglicizada e uniformizada. Não se trata apenas de as crianças serem retiradas à força do processo de socialização no lar, obrigadas a falar uma língua oficial e punidas (frequentemente de forma corporal) por fazerem o contrário. Não se trata apenas de as escolas redefinirem o sucesso, afastando-o daquilo que é valorizado pela comunidade e aproximando-o daquilo que faz de alguém um melhor cidadão do estado. Não: o impacto mais significativo da educação estatal obrigatória é incutir nas crianças a ideia de que a sua língua e a sua cultura são inúteis, sem valor na sala de aula moderna ou na sociedade, e que apenas servem para as distinguir negativamente dos seus pares, como objecto do seu tormento cruel.
Mas estas línguas têm, claramente, valor, nem que seja apenas porque as pessoas as valorizam. As línguas locais e minoritárias são valorizadas pelos seus falantes por inúmeras razões, seja para uso na comunidade local, para comunicar com os mais velhos, por um sentido de herança, pelas tradições orais e literárias dessa língua, ou por qualquer outro motivo. Mais uma vez, o praxeólogo não está em posição de avaliar estas crenças. O praxeólogo limita-se a observar que a livre escolha no uso da língua e a livre escolha de associação — não ditadas por decretos do estado — satisfarão melhor a procura dos indivíduos, quer por línguas minoritárias, quer por lingua francas.7 Aquilo que as pessoas consideram útil, elas usarão.
Em contraste, o estado não valoriza nenhuma destas coisas. Para o estado, o objectivo é ligar os indivíduos a si próprio, a uma comunidade homogénea imaginada de bons cidadãos, em vez de à sua comunidade local. Os laços nacionais sobrepõem-se aos locais aos olhos do estado. A livre escolha de associação é inteiramente desconsiderada. E assim o estado força muitos povos indígenas a tornarem-se membros de uma comunidade estrangeira, onde são uma minoria e a sua língua é desprezada, como no caso dos internatos. Enquanto em casa o domínio da língua nativa é uma parte importante do funcionamento na comunidade e da obtenção de prestígio — e, portanto, algo de valor —, na escola torna-se uma mancha e um prejuízo. Dada a forma quase prisional como as escolas são geridas, e as pressões intensas (e por vezes perigosas) exercidas pelos pares, as crianças falantes de línguas minoritárias fariam bem em dissociar-se o mais rapidamente possível do seu património cultural.
O resultado é que, há duas gerações, depois de o modelo prussiano de educação obrigatória se ter enraizado firmemente em países de todo o mundo, uma geração inteira de povos minoritários decidiu que a sua língua não tinha valor e, quando teve filhos, recusou-se a ensiná-la. A extinção iminente das línguas é tanto o resultado de processos desencadeados há um século pelo estado como da hegemonia contínua dos nossos dias.
O próprio Mises, embora por vezes caísse em falácias comuns sobre a linguagem, como o determinismo linguístico e o isomorfismo etnolinguístico, estava consciente desta distinção entre o declínio linguístico natural e a morte linguística provocada pelo estado. De facto, todo o primeiro capítulo de uma das suas obras iniciais, Nação, Estado e Economia, é dedicado às questões da língua e do estado. Ele observa:
Bem distinta da assimilação natural através do contacto pessoal com pessoas que falam outras línguas é a assimilação artificial — a desnacionalização por coerção estatal ou outra.… Se os indivíduos forem colocados num ambiente em que são cortados do contacto com os seus compatriotas e tornados exclusivamente dependentes de contactos com estrangeiros, então fica preparado o caminho para a sua assimilação.8
Foi precisamente isto que o Bureau of Indian Affairs realizou ao coagir crianças indígenas a frequentar internatos. Essas crianças foram cortadas da sua cultura e da sua língua — da sua nação — até assimilarem eficazmente as ideologias americanas relativas às línguas minoritárias, nomeadamente, que o inglês é bom e tudo o resto é mau.
E não é esta a única forma pela qual o estado afecta a linguagem. A própria existência do estado-nação moderno, e da ideologia que o acompanha, é antitética à diversidade linguística. Ela assenta na ideia de um estado, uma nação, um povo. Em Nação, Estado e Economia, Mises observa que, antes da ascensão do nacionalismo nos séculos XVII e XVIII, o conceito de nação não se referia a uma unidade política como o estado ou o país tal como os concebemos hoje. Uma “nação” referia-se antes a um conjunto de indivíduos que partilhavam uma história comum, religião, costumes culturais e — sobretudo — língua. Mises chegou mesmo a afirmar que “a essência da nacionalidade reside na língua”.9 O “estado” era algo distinto, referindo-se à nobreza ou ao estado principesco, e não a uma comunidade de pessoas (daí a célebre frase de Luís XIV, “L’état c’est moi”).10 Nessa época, um estado podia consistir em muitas nações, e uma nação podia abranger muitos estados.
A ascensão do nacionalismo alterou tudo isto. Como observa Robert Lane Greene no seu excelente livro You Are What You Speak: Grammar Grouches, Language Laws, and the Politics of Identity,
As antigas fronteiras linguísticas difusas tornaram-se inconvenientes para os nacionalistas. Para construir nações suficientemente fortes para conquistarem um estado, os povos de uma nação em formação precisavam de ser soldados por um sentido claro de comunidade. Falar um dialecto minoritário ou recusar a assimilação a um padrão não servia.11
O próprio Mises desenvolveu este ponto. Apesar da sua crença no valor da democracia liberal, que o acompanharia pelo resto da vida, Mises apercebeu-se cedo de que a imposição da democracia sobre múltiplas nações só poderia conduzir à hegemonia e à assimilação:
Em territórios poliglotas, portanto, a introdução de uma constituição democrática não significa de modo algum a mesma coisa que a introdução de autonomia democrática. O governo da maioria significa aqui algo bastante diferente do que em territórios nacionalmente homogéneos; aqui, para uma parte do povo, não é governo popular, mas governo estrangeiro. Se as minorias nacionais se opõem a arranjos democráticos, se, consoante as circunstâncias, preferem o absolutismo principesco, um regime autoritário ou uma constituição oligárquica, fazem-no porque sabem bem que a democracia significa para elas o mesmo que a sujeição ao domínio de outros.12
Da ideologia do nacionalismo nasceu também o princípio do irredentismo13, a política de incorporar povos historicamente ou etnicamente relacionados sob o guarda-chuva mais amplo de um único estado, independentemente das suas diferenças linguísticas. Como Greene assinala, por exemplo,
Segundo uma estimativa, apenas 2 ou 3 por cento dos recém-cunhados “italianos” falavam italiano em casa quando a Itália foi unificada, na década de 1860. Alguns dialectos italianos eram tão diferentes entre si como o italiano moderno é do espanhol moderno.14
Isto levou, por sua vez, o estadista italiano Massimo D’Azeglio (1798–1866) a afirmar: “Fizemos a Itália. Agora precisamos de fazer os italianos.” E assim essas línguas italianas tornaram-se mais uma vítima do estado-nação.
Mises previu, de forma notavelmente presciente, que:
Se [as nações minoritárias] não quiserem permanecer politicamente sem influência, então terão de adaptar o seu pensamento político ao do seu ambiente; terão de abandonar as suas características nacionais especiais e a sua língua.15
Esta é, em grande medida, a história das línguas do mundo. É, como vimos, a história do estado, uma história de furor nacionalista e de assimilação pela força. Só quando abandonarmos esta fantasia socialista e utópica de um estado, uma nação, um povo é que esta história começará a mudar.
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.
Notas:
- Michael Krauss, «The World’s Languages in Crisis», Language, vol. 68, n.º 1 (1992). ↩︎
- M. Paul Lewis (org.), Ethnologue: Languages of the World, 16.ª edição (2009), Dallas, TX: SIL International. ↩︎
- Krauss, «The World’s Languages in Crisis»; Christopher Moseley (org.), Atlas of the World’s Languages in Danger, 3.ª ed. (2010), Paris, UNESCO Publishing. ↩︎
- Ludwig von Mises, Nação, Estado e Economia (edição online, 1919; 1983), Ludwig von Mises Institute, pp. 46–47. ↩︎
- Ludwig von Mises, A Acção Humana: Um Tratado de Economia (edição académica, 2010), Auburn, AL: Ludwig von Mises Institute, p. 19. ↩︎
- Amy L. Paugh, Playing With Languages: Children and Change in a Caribbean Village (2012), Berghahn Books. ↩︎
- Sistema de comunicação usado para estabelecer relações comerciais ou para comunicações básicas, numa comunidade em que coexistem duas ou mais línguas. [N. do T.] ↩︎
- Mises, Nação, Estado e Economia, p. 55. ↩︎
- Mises, Nação, Estado e Economia, p. 37. ↩︎
- «O Estado sou eu». ↩︎
- Robert Lane Greene, You Are What You Speak: Grammar Grouches, Language Laws, and the Politics of Identity (edição Kindle, 2011), Delacorte Press, p. 132. ↩︎
- Mises, Nação, Estado e Economia, p. 77. ↩︎
- Irredentismo é a doutrina ou política que defende anexar territórios considerados historicamente, etnicamente ou culturalmente pertencentes a uma nação, mas sob domínio estrangeiro. [N. do T.] ↩︎
- Greene, You Are What You Speak, p. 141. ↩︎
- Mises, Nação, Estado e Economia, p. 77. ↩︎
