Mesmo que existam muitos livros publicados, assim como institutos voltados à pesquisa e à divulgação de informações, como também grupos que se debruçam sobre o tema, o Libertarianismo pode causar uma série de dúvidas e, até mesmo, uma má impressão àqueles que ouvem falar dele pela primeira vez. Exemplos disso são opiniões do tipo “Libertarianismo é libertinagem”, “Libertarianismo é utopia” ou “Libertarianismo é um meio de desorganizar a própria vida”. Em razão da existência dessas maneiras de pensar, que julgo equivocadas, proponho um conceito dessa filosofia política com o objectivo de evitar possíveis erros interpretativos.
O Libertarianismo- em especial, o austrolibertarianismo– é uma filosofia política que tem como axioma central o princípio da não-agressão (PNA). Nele é estabelecido que nenhum homem ou um grupo de homens podem iniciar ou ameaçar iniciar uma agressão física contra o corpo e/ou a propriedade privada de outrem. O uso da força física é permitido somente para a defesa e essa deve ser proporcional ao período e ao nível de violência empregada contra a vítima [1]. Além disso, o Libertarianismo também é composto pela defesa de dois direitos naturais e universais: o direito de propriedade (bens que os indivíduos possuem de maneira legítima através da apropriação original) e autopropriedade (soberania do ser humano sob o seu próprio corpo). Ambos os direitos também são um meio de resolver os conflitos entre os homens, que ocorre quando eles decidem usar o mesmo bem escasso para fins diferentes, uma vez que boa parte dos conflitos – senão todos – ocorrem devido à escassez de recursos materiais. Por esse motivo, existe a necessidade de estabelecer o que pertence a um e o que pertence ao outro de maneira justa [2].
Um dos avanços significativos na teoria libertária, de uma forma mais profunda, foi a Ética Argumentativa elaborada por Hans Hoppe. A mesma estabelece que apenas a instituição da propriedade privada sob bens e sob o próprio corpo são justas e usáveis na justificação para resolver conflitos e estabelecer uma ordem social eficaz (problema da filosofia política); e também para saber como lidar com a escassez de bens e o uso eficaz dos mesmos na produção de bens e/ou serviços (problema da economia política):
́[…] Reconhecer que argumentação é uma forma de acção e que não consiste de sons flutuando no ar implica o reconhecimento do fato de que toda argumentação requer que uma pessoa tenha controle exclusivo sobre o recurso escasso de seu corpo. Enquanto houver argumentação, há reconhecimento mútuo da propriedade privada de cada um sob o próprio corpo. É esse reconhecimento do controle exclusivo de cada um sobre seu próprio corpo, pressuposto por toda argumentação, que explica a característica única da comunicação verbal que, enquanto pode-se discordar sobre o que foi dito, ainda é possível concordar, ao menos, com o fato de que há essa discordância. De novo, esse direito de propriedade sobre o próprio corpo deve dizer-se justificado a priori, pois qualquer um que tente justificar qualquer norma já teria de pressupor o direito exclusivo ao controle sobre seu corpo como uma norma já teria de pressupor o direito exclusivo ao controle sobre seu corpo como uma norma válida a fim de dizer eu proponho isso ou aquilo.[…][3]
Além disso, Hoppe explica-nos que o problema da ordem social surge por causa da existência de possíveis conflitos por conta da escassez de bens, onde um indivíduo pode querer usar um bem ou propriedade no mesmo momento e lugar que outrem. Dado esse factor, as outras tentativas de propor meios que possam abrir a possibilidade de solucionar os conflitos, não foram suficientes e assertivas, pois os seus propositores apenas nos deixaram a resposta de que uma ordem social que consiga orientar, de forma assertiva, como evitar os conflitos é algo ilusório. Porém, a ética libertária, como explica Hoppe, tem uma posição muito diferente à esse tipo de raciocínio. [4].
O liberalismo clássico inglês do século XVI e XVII, com a sua defesa do individualismo, da propriedade privada, com uma postura contra o governo centralizado e o poder absoluto do monarca, foi o que veio a dar base ao Libertarianismo. Pode afirmar-se que o Libertarianismo é uma evolução ainda mais ousada do liberalismo clássico inglês. Podemos ver isso claramente durante a Revolução Americana, devido ao facto de os norte-americanos não terem aceite o imperialismo inglês, o mercantilismo, os impostos abusivos, por ter uma desconfiança inata em relação ao poder, por terem entendido que o governo deve ser limitado e descentralizado, que os homens administram melhor às suas próprias vidas, que e o governo não deve interferir nas escolhas dos indivíduos e muito menos em suas propriedades privadas adquiridas de maneira legítima, que os impostos podem ser cobrados somente com o consentimento dos indivíduos, que o poder do exército também deve ser limitado e entre outras questões que tendam à limitação do poder governamental. Na prática, essas ideias objectivaram-se na constituição americana e na Declaração de Direitos (Bill of Rights).
Essa mentalidade em favor da propriedade privada, pela soberania do indivíduo sobre o seu próprio corpo frente ao absolutismo monárquico e ao governo centralizado, tem a sua primeira aparição com o filósofo John Locke, em especial, em sua obra “Segundo Tratado Sobre o Governo Civil” (1689). Outros principais influenciadores da Revolução Americana foram os lockeanos do século XVIII, chamados John Trenchard e Thomas Gordon. Nas “Cartas de Catão”, os dois procuraram aplicar os ensinamentos de Locke aos problemas concretos causados pelo governo, chegando à conclusão de que a tendência do seu poder é sempre crescer rumo à destruição dos direitos de cada indivíduo sob a sua pessoa e propriedade. E é devido a esses factores que os indivíduos precisam de manter uma vigilância constante em relação ao poder governamental.
O libertarianismo não se limita apenas ao discurso – como alguns costumam pensar -, também está voltado para questões da vida quotidiana, tais como: economia, filosofia, educação, direito, ética, relações interpessoais e etc. Isso foi muito bem demonstrado por Murray Rothbard, principalmente em seus livros como em Por Uma Nova Liberdade: O Manifesto Libertário (1973) e em A Ética da Liberdade (1982). Rothbard reuniu autores anarquistas – com suas oposições à coerção estatal – e figuras importantes da tradição libertária e liberal clássica, como Lysander Spooner, Benjamin Tucker, Henry David Thoreau e Albert J. Nock, Frédéric Bastiat, Gustave de Molinari e Étienne de La Boétie , o que deu origem ao chamado libertarianismo moderno, que é popularmente conhecido como Anarcocapitalismo (anarquismo de propriedade privada). Rothabrd concluiu que o estado não vive para o benefício daqueles que o mesmo diz representar, mas que na realidade, tal instituição é sustentada sob o roubo legalizado e institucionalizado da riqueza (impostos) dos indivíduos, que usa de coerção contra seres humanos pacíficos, corroendo a liberdade deles e tornando-os mais pobres. Ademais, o estado também conta com a ajuda de intelectuais estatistas que tem como finalidade justificar a necessidade dele existir, tornando-o legítimo para a maioria do público, em troca de status e dinheiro. Actualmente quem continua o legado de Murray Rothbard é o já referido filósofo político e economista austro-libertário Hans-Hermann Hoppe, com o seu rigor argumentativo, ele faz uma defesa consistente da propriedade privada frente à coerção estatal, levando em consideração as questões teóricas e também empíricas [5], o que reforça os argumentos em favor da anarquia de propriedade privada [6].
Diante do exposto, o libertarianismo nada tem a ver com libertinagem, utopia ou desorganização da vida das pessoas. Primeiro, porque ele não estabelece nenhuma norma que estimule acções imprudentes da parte dos homens e que as atitudes que eles moralmente julgarem como inadequadas para si, podem muito bem serem rejeitadas individualmente por cada pessoa. Segundo, essa filosofia política não tem como finalidade e nem meio a criação de uma sociedade moldada a partir do nada – muito pelo contrário -, a proposta é o retorno de valores pacíficos – que foram devidamente melhorados ao longo do tempo – e que favorecem a liberdade de cada indivíduo em oposição aos engenheiros sociais e burocratas do governo. Pois, com mais liberdade temos o progresso e com a coerção estatal temos o declínio. Terceiro, pela razão de que o princípio da não-agressão (PNA), o direito de propriedade e autopropriedade já é a sugestão da possibilidade de uma organização eficiente da própria vida e da boa convivência com as outras pessoas. Por fim, esses três elementos não estão abertos à concessão de qualquer natureza, já que isso significaria trair e se afastar do objectivo final do libertarianismo, que é o do pleno respeito à
propriedade privada e à autopropriedade, e por consequência, a liberdade.
- Murray Rothbard aborda essa questão no capítulo 12 do seu livro A Ética da Liberdade (1982), o aspecto jurídico dela foi aperfeiçoada por Stephan Kinsella em seu artigo intitulado: Agressão, pena e proporcionalidade- como estabelecer limites. Disponível em:
https://rothbardbrasil.com/agressao-pena-e-proporcionalidade-como-estabelecer-os-limites/ ↩︎ - Veja mais sobre isso no livro: HOPPE, Hans-Hermann. Manual Para Entender Direito o Libertarianismo, 2018. Trad. Fernando Chiocca, João Marcos Theodoro, Pedro Anitelle, Daniel Chaves Claudino, Larissa Guimarães, Bruno Cavalcante. Instituto Rothbard, 2020. Cap. 2, pág. 41–43. ↩︎
- [3]HOPPE, Hans-Hermann. A Economia e a Ética da Propriedade Privada, 1993. Trad. João Marcos Theodoro, Fernando Fiori Chiocca…[et.al]. 1° edição. Instituto Rothbard: São Paulo, 2021. Cap. 12 , pág.319 ↩︎
- HOPPE, Hans-Hermann. A Economia e a Ética da Propriedade Privada, 1993. Trad. João Marcos Theodoro, Fernando Fiori Chiocca…[et.al]. 1° edição. Instituto Rothbard: São Paulo, 2021. Cap. 15, pág.361–367 ↩︎
- Para mais informações sobre Hans-Hermann Hoppe e o seu método investigativo, você pode encontrar no livro Coord. Dennys Xavier, Hans Hoppe e a insustentável defesa do estado: Breves Lições (Coleção Breves Lições). São Paulo: LVM Editora, 2019. Cap. 1 e 2. ↩︎
- HOPPE, Hans-Hermann. Soluções Simples, Conclusões Radicais: Anarquia e
Estado. Medium.com, 2024. Disponível em:
https://medium.com/%40aliancadelibertariosdoacre/solu%C3%A7%C3%B5es-simples-conclus%C3%B5es-radicais-anarquia-e-estado-4ab5829801f8 Acesso em 15 de outubro de 2024. ↩︎
Referências bibliográficas:
- DOHERTY, Brian. Quem foi Murray Rothbard: o primeiro anarcocapitalista, Julho de 2020. Disponível em: https://ideiasradicais.com.br/murray-rothbard/ Acesso em 15 de outubro de 2024.
- ROTHBARD, Murray N. Por Uma Nova Liberdade: O Manifesto Libertário. 1973. Trad. Rafael de Sales de Azevedo. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, Cap. 1, 2, 3.
- ROTHBARD, Murray. A Ética da Liberdade. 1982. Trad. Fernando Fiori Chiocca, 2° edição. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. Cap. 6, 7, 8, 13.
- SPOONER, Lysander. Direito Natural ou A Ciência da Justiça. 1882. Trad. Erick
Vasnconcelos. São Paulo: Abacate Libertário. - HOPPE, Hans-Hermann. Manual Para Entender Direito o Libertarianismo. Trad. Fernando Chiocca, João Marcos Theodoro, Pedro Anitelle, Daniel Chaves Claudino, Larissa Guimarães, Bruno Cavalcante, 2° Edição. São Paulo: Instituto Rothbard, 2020. Cap. 1 e 2.
- HOPPE, Hans-Hermann. A Economia e a Ética da Propriedade Privada, 1993. Trad. João Marcos Theodoro, Fernando Fiori Chiocca…[et.al]. 1° edição. Instituto Rothbard: São Paulo, 2021.