Duas variedades de materialismo
O termo materialismo como utilizado no discurso contemporâneo tem duas conotações completamente distintas.
A primeira conotação refere-se a valores e caracteriza a mentalidade de pessoas que desejam apenas riqueza material, satisfações corporais e prazeres sensoriais.
A segunda conotação é ontológica e representa a doutrina de que todos os pensamentos, ideias, julgamentos de valor e vontades humanas são o produto de processos físicos, químicos e fisiológicos que acontecem no corpo humano. Consequentemente, o materialismo desta variedade nega a importância do estudo dos processos mentais que resultam num determinado tipo de comportamento [1] e das ciências da acção humana, da praxeologia tal como da história; apenas as ciências naturais são científicas. Neste capítulo trataremos apenas desta segunda conotação do materialismo.
A tese materialista nunca foi até hoje comprovada ou particularizada. Os materialistas não ofereceram mais que analogias ou metáforas. Compararam o funcionamento da mente humana com a operação de uma máquina ou com processos fisiológicos. Ambas as analogias são insignificantes e não explicam coisa alguma.
Uma máquina é um mecanismo fabricado pelo homem. É a realização de um projecto e funciona de forma precisa de acordo com o plano dos seus autores. O que produz o produto da sua operação não é algo dentro de si mas o propósito que o construtor queria realizar através da sua construção. É o construtor e o operador que criam o produto, não a máquina. Atribuir à máquina qualquer actividade é antropomorfismo e animismo. A máquina não tem qualquer controlo sobre o seu funcionamento. Não se move; é colocada e mantida em movimento pelo homem. É uma ferramenta morta que é empregada pelo homem e que se imobiliza assim que os efeitos do impulso do operador cessam. O que o materialista que recorre à metáfora da máquina teria de explicar em primeiro lugar é isto: quem construiu a máquina humana e quem a opera? Em que mãos serve a máquina humana de ferramenta? É difícil ver como qualquer outra resposta possa ser dada a esta questão além desta: É o Criador.
É usual referir-se um mecanismo automático como se este agisse sozinho. Mas também esta força de expressão é uma metáfora. Não é a máquina de calcular que calcula, mas o operador pelo meio de uma ferramenta engenhosamente criada por um inventor. A máquina não tem inteligência; não pensa ou escolhe fins ou recorre a meios para a realização dos fins escolhidos. Isto é sempre levado a cabo pelo homem.
A analogia fisiológica é mais razoável que a analogia mecânica. Pensar está inseparavelmente ligado a processos fisiológicos. Na medida em que a tese fisiológica nos assegura meramente deste facto, não é metafórica; mas diz-nos muito pouco. Porque o problema é precisamente que não sabemos nada sobre os fenómenos fisiológicos que constituem o processo que produz poemas, teorias e planos. A patologia providencia informação abundante sobre o enfraquecimento ou a total aniquilação das faculdades mentais que resultam de danos causados ao cérebro. A anatomia providencia não menos abundante informação sobre a estrutura química das células cerebrais e sobre o seu comportamento fisiológico. Mas apesar do avanço no conhecimento fisiológico, não sabemos mais sobre a relação entre a mente e o corpo do que os filósofos antigos que primeiro começaram a estudá-la. Nenhuma das doutrinas avançadas por eles foi provada ou refutada por novos conhecimentos adquiridos sobre fisiologia.
Pensamentos e ideias não são espectros. São coisas reais. Apesar de intangíveis e imateriais, são factores que trazem mudanças no reino do tangível e das coisas físicas. São gerados por um processo desconhecido que se dá no corpo de um ser humano e podem ser percebidos apenas pelo mesmo tipo de processo a decorrer no corpo do seu autor ou no de outros seres humanos. Podem ser chamados de criativos ou originais na medida em que o impulso que oferecem e as mudanças que proporcionam dependem da sua emergência. Podemos verificar o que desejarmos sobre a vida de uma ideia e os efeitos da sua existências. Sobre o seu nascimento sabemos apenas que foi engendrada por um indivíduo. Não podemos rastrear a sua história anterior a esse ponto. A emergência de uma ideia é uma inovação, um novo facto acrescentado ao mundo. Devido à insuficiência do nosso conhecimento, é, para as mentes humanas, a origem de algo novo que não existia antes.
O que uma doutrina materialista satisfatória teria de descrever é a sequência de eventos que resultam uma ideia específica. Teria de explicar porque é que as pessoas concordam ou discordam em relação a problemas específicos. Teria de explicar o porquê de um homem ser bem sucedido na solução de um problema que outro não conseguiu solucionar. Mas nenhuma doutrina materialista tentou, até agora, fazê-lo.
Os proponentes do materialismo pretendem salientar a insustentabilidade de todas as outras doutrinas que foram avançadas para solucionar o problema da relação corpo-mente. São especialmente zelosos em combater a interpretação teológica. No entanto a refutação de uma doutrina não prova a validade de outra doutrina que se lhe oponha.
Talvez seja um empreendimento demasiado arrojado para a mente humana especular sobre a sua própria natureza e origem. Pode ser verdade, como o agnosticismo mantém, que o conhecimento sobre estes problemas seja para sempre negado ao homem mortal. Mas ainda que assim seja, isso não justifica a condenação das questões implicadas como sem sentido e sem valor pelos positivistas lógicos.
A analogia da secreção
Uma formulação notória da tese materialista afirma que os pensamentos estão para o cérebro como a bílis para o fígado ou a urina para os rins. Em regra os autores materialistas são mais cuidadosos na forma como formulam esta analogia. Mas essencialmente o que dizem é equivalente a este dito provocativo.
A fisiologia distingue entre urina de uma composição química normal e outros tipos de urina. Um desvio da composição normal é explicado por certas diferenças na compleição física ou no funcionamento dos órgãos do corpo do que é considerado normal e saudável. Também estes desvios seguem um padrão regular. Uma anormalidade definida ou um estado patológico do corpo é reflectido numa correspondente alteração da composição química da urina. A assimilação de certos alimentos, bebidas ou drogas produz fenómenos relacionados na composição da urina. Em pessoas saudáveis, comummente chamadas normais, a urina é, dentro de certas margens limitadas, da mesma natureza química.
Algo distinto sucede com os pensamentos e ideias. Com estes não há uma questão de normalidade ou de desvios da normalidade seguindo um padrão definido. Certos danos corporais ou a assimilação de certas drogas e bebidas obstruem e perturbam a faculdade da mente para pensar. Mas mesmo estas interferências não são uniformes entre várias pessoas. Pessoas diferentes têm ideias diferentes, e nenhum materialista conseguiu ligar estas diferenças a factores que possam ser descritos em termos da física, da química ou da fisiologia. Qualquer referência às ciências naturais e a factores materiais com que lidam é vã quando perguntamos porque algumas pessoas votam à Direita ou à Esquerda [2].
Até hoje pelo menos as ciências naturais não conseguiram descobrir quaisquer características corporais ou materiais cuja presença ou ausência possa ser dada como causa de ideias ou pensamentos. Na verdade, o problema da diversidade do conteúdo das ideias e dos pensamentos nem sequer chega a surgir nas ciências naturais. Estas lidam com objectos que afectam ou alteram a intuição sensorial. Mas ideias e pensamentos não afectam directamente as sensações. O que as caracteriza é o significado – e para a cognição de significados os métodos das ciências naturais são inapropriados.
As ideias influenciam-se umas às outras, providenciam estímulos para a emergência de novas ideias, substituem ou transformam outras ideias. A única coisa que o materialismo poderia oferecer para a análise destes fenómenos é uma referência metafórica à noção de contágio. A comparação é superficial e não explica nada. As doenças são comunicadas de corpo para corpo através da migração de germes e vírus. Ninguém sabe nada sobre a migração de um factor que transmita pensamentos de um homem para outro homem.
As implicações políticas do materialismo
O materialismo teve origem como uma reacção à interpretação primitiva dualista do homem e da sua natureza. À luz destas crenças, o homem é um composto de duas partes divisíveis: um corpo mortal e uma alma imortal. A morte dividia estas duas partes. A alma saía da vista dos vivos e continuava uma existência espectral para além do alcance dos poderes terrenos no reino dos falecidos. Em casos excepcionais era permitido a uma alma reaparecer por algum tempo no mundo sensível dos vivos ou para um homem ainda vivo fazer uma curta visita aos campos dos mortos.
Estas representações cruas foram sublimadas por doutrinas religiosas e pela filosofia idealista. Enquanto as descrições primitivas do reino das almas e as actividades dos seus habitantes não podem ser alvo de um exame crítico e podem ser facilmente expostas ao ridículo, é impossível tanto para o raciocínio apriorístico como para as ciências naturais refutar convincentemente os princípios refinados de crenças religiosas. A história pode explodir muitas das narrações históricas da literatura teológica. Mas um criticismo mais elevado não afecta o núcleo da fé. A razão não pode provar ou refutar a essência das doutrinas religiosas.
Mas o materialismo como foi desenvolvido na França do Século XVIII não era apenas uma doutrina científica. Era também parte do vocabulário dos reformistas que lutaram contra os abusos do antigo regime. Os prelados da Igreja na França Real eram, com poucas excepções, membros da aristocracia. A grande maioria estava mais interessada em intrigas palacianas do que na realização dos seus deveres eclesiásticos. A sua merecida impopularidade tornou as tendências anti-religiosas populares.
Os debates sobre materialismo teriam desaparecido a meio do séc. XIX se nenhum assunto político estivesse envolvido. As pessoas teriam percebido que a ciência contemporânea não contribuiu em nada para a elucidação ou análise dos processos fisiológicos que geram ideias específicas e é duvidoso que futuros cientistas tenham melhores resultados nesta tarefa. O dogma materialista teria sido considerado como uma conjectura sobre um problema cuja solução satisfatória parecia, pelo menos de momento, para além do alcance da procura do homem por conhecimento. Os seus apoiantes não estariam mais numa posição de considerar o materialismo como verdade científica e não teriam podido acusar os seus críticos de obscurantistas, ignorantes e supersticiosos. O agnosticismo teria substituído o materialismo.
Mas na maioria dos países europeus e da América Latina, as igrejas Cristãs cooperaram, pelo menos até certo ponto, com as forças que se opuseram ao governo representativo e a todas as instituições que procuravam assegurar liberdades. Nestes países era quase impossível evitar atacar a religião se se procurasse a realização de um programa que mais ou menos coincidisse com os ideais de Jefferson ou Lincoln. As implicações políticas da controvérsia materialista preveniram o seu desvanecimento. Solicitado não por considerações epistemológicas, filosóficas ou científicas, mas por razões puramente políticas, uma tentativa desesperada foi feita para salvar o slogan muito conveniente do “materialismo”. Enquanto que o tipo de materialismo que floresceu até meio do Século XIX passou para segundo plano, dando lugar ao agnosticismo, e não poderia ser regenerado por rudes e ingénuos escritos como os de Haeckel, um novo tipo foi desenvolvido por Karl Marx sob o nome de materialismo dialéctico.
Notas do T.:
- No original, Mises refere-se ao “estudo dos processos mentais que resultam num determinado tipo de comportamento” como “timologia” (thymology), termo explicado por Mises noutra secção da mesma obra da qual este texto é um excerto, para a qual não existe ainda tradução. Optou-se traduzi-lo pelo seu significado, como explicado por Mises, do que fazer uma tradução directa do termo sem qualquer explicação. ↩︎
- No original Mises escreve “Republican” and “Democrat”. Para uma audiência portuguesa, os termos podem ser alvo de confusão, daí a mudança para “Direita” e “Esquerda” respectivamente. ↩︎
Sobre a publicação:
Este texto corresponde ao Capítulo 6 de Theory and History: An Interpretation of Social and Economic Evolution (versão integral no Ludwig von Mises Institute)