Imagine um indivíduo que esteja letárgico e sem nenhuma energia para funcionar no seu nível normal de concentração porque não conseguiu dormir nada na noite passada. Ele pode utilizar alguns medicamentos que o farão sentir-se completamente revigorado e aparentemente capaz de estudar e trabalhar no dia seguinte com toda a eficiência, mesmo após uma noite completa de insónia.
No entanto, utilizar tais medicamentos não é, definitivamente, uma boa ideia. Isto porque o problema fundamental desse indivíduo — as poucas horas de sono — não só não se resolve pelo estímulo do medicamento, como na realidade se agrava. Afinal, esse estímulo tão só esgotará a pequena reserva de energia que o indivíduo ainda possui, levando-o mais depressa à completa exaustão.
Esta descrição aplica-se tanto à actual recessão económica nos EUA e na Europa, como aos esforços de ultrapassa-la recorrendo a “políticas fiscais” e “pacotes de estímulos”. Estas expressões são sinónimo de mais gastos governamentais e impostos mais baixos para estimular o consumo. Isto inclui a dar subsídios a pessoas que não pagaram imposto sobre o rendimento (IRS), as quais, devido ao seu baixo rendimento, presumivelmente sairiam correndo às compras, consumindo mais à medida que mais dinheiro é colocado nas suas mãos.
A principal diferença entre estes “estimulantes” económicos e aqueles farmacêuticos é que os económicos não terão sucesso em restabelecer os níveis normais de actividade do sistema económico nem sequer de forma temporária.
Um sistema económico que entra numa grande recessão ou depressão está numa situação similar à do nosso indivíduo imaginário que se encontra privado de sono, bastando substituir a falta de sono – que é necessário para o organismo funcionar normalmente – pela perda de algo que seja necessário para o sistema económico funcionar adequadamente.
Capital
No caso do sistema económico, esse algo necessário é capital. O sistema económico não está a funcionar adequadamente porque perdeu capital. O capital é toda a riqueza acumulada pertencente a empresas ou a indivíduos, e que é utilizada com o propósito de se gerar lucros ou ganhar juros.
O capital abrange todas as fábricas, minas e quintas agrícolas, bem como todas as máquinas, todos os meios de transporte e de comunicação, todos os armazéns, lojas, escritórios, imóveis comerciais e residenciais, e todos os stocks de materiais, componentes, matérias-primas, produtos semi-acabados e acabados que são propriedade de empresas.
O capital também abrange o dinheiro que é detido pelas empresas, embora o dinheiro esteja numa categoria especial.
Adicionalmente, inclui os fundos que são emprestados aos consumidores a uma determinada taxa de juro, para que estes possam comprar bens de consumo como imóveis, automóveis, electrodomésticos e tudo mais que seja demasiado caro para ser comprado com o rendimento obtido num período salarial e para o qual o comprador não possua poupanças suficientes.
A quantidade de capital num sistema económico determina sua capacidade de produzir bens e serviços, assim como de empregar mão-de-obra e também de comprar bens de consumo a crédito. Quanto maior o capital, maior a capacidade de se realizarem todas essas actividades; quanto menor o capital, menor a sua capacidade de realizar qualquer uma destas actividades.
Poupança
O capital resulta da acumulação da poupança. Poupar é o acto de se abster de consumir fundos que foram adquiridos através da venda de bens ou serviços.
Poupar não significa não gastar. Não significa guardar dinheiro dentro da gaveta (“atesourar ou entesourar” – em inglês “hoarding”). Poupar significa não consumir. Ao abster-se de gastar em consumo possibilita-se que exista um gasto equivalente na produção. Quem poupa está na posição— na proporção da quantidade poupada — de comprar bens de capital e pagar salários a trabalhadores, emprestar fundos para que outras pessoas comprem bens de consumo dispendiosos ou emprestar fundos para terceiros para que estes os utilizem em qualquer destes fins.
É necessário salientar estes factos por causa do estado predominante de completa ignorância que domina este assunto. Tal ignorância é perfeitamente exemplificada por keynesianos — seja na imprensa, seja na política, seja no meio académico — que recorrentemente fazem declarações do género da que se segue, de um artigo do The New York Times: “Quando as pessoas poupam, o dinheiro não circula pela economia. Logo, uma poupança maior traduz-se num consumo menor, menos vendas e, menos receitas para empresas ”. [1]
O autor do artigo aparentemente acredita que as habitações e outros bens de consumo dispendiosos são comprados com o rendimento de uma única semana ou um único mês, que é o intervalo de tempo entre dois salários. Se tal fosse, não seria necessário poupar de modo a poder comprá-los. Na realidade, a compra de uma casa geralmente requer todo o rendimento de três ou mais anos por parte do comprador; um automóvel requer vários meses; e vários outros bens, são demasiado caros para serem comprados com o rendimento de apenas um período.
Em todos esses casos, o processo de poupança é essencial para a compra de bens de consumo. A poupança acumulada pode ser toda do próprio comprador, ou pode ser parcial no caso em que o comprador use parte da sua poupança e parte das poupanças emprestadas por outra pessoa ou empresa. Porém, em todos os casos, a poupança é essencial para a compra de bens de consumo dispendiosos.
O jornalista do The New York Times, e todos os seus colegas assim como os professores que supostamente ensinaram o jornalista e os colegas destes, que proclamam tais disparates sobre a poupança, também são ignorantes em relação a outros factos relativos à mesma. Eles não sabem que a poupança é uma pré-condição para que os retalhistas sejam capazes de comprar bens a distribuidores, que os distribuidores possam comprar bens a produtores e os produtores de comprar bens aos seus fornecedores. E assim sucessivamente. Também é uma pré-condição para que os vendedores, em qualquer estágio da cadeia produtiva, consigam pagar salários.
Todos esses gastos, geralmente têm de ser feitos antes de o empreendedor em questão receber qualquer dinheiro pela venda dos seus bens. Por exemplo, empresas que fabriquem automóveis – como resultado da aplicação de trabalho e de bens de capital adquiridos – não podem pagar aos seus trabalhadores e fornecedores antes da venda dos automóveis se concretizar. E mesmo no caso em que os pagamentos a fornecedores sejam feitos após a realização das vendas dos bens, o vendedor tem que se abster de consumir esses fundos, isto é, ele tem que os poupar de modo a pagar pelo trabalho e pelos bens de capital que ele adquiriu anteriormente.
Contrariamente a esta realidade, os jornalistas e os académicos keynesianos parecem acreditar que vendedores não fazem nada mais do que consumir ou armazenar o dinheiro que obtêm. Eles mostram um raciocínio limitado ao não compreender que, se isto fosse realmente verdade, na economia haveria apenas procura por bens de consumo. Isto torna-se claro simplesmente seguindo o padrão de raciocínio apresentado nos livros keynesianos quando descrevem o processo de gastos na economia.
Assim, um consumidor compra, digamos, 100€ em camisas numa loja. O proprietário da loja, por conseguinte, seguindo a sua “propensão marginal ao consumo” keynesiana de 0,75, irá gastar 75€ comendo num restaurante, e supostamente irá guardar os 25€ que sobram. O proprietário do restaurante, por sua vez, irá gastar 56,25€ (0,75 x 75€) comprando livros, e supostamente armazenará os restantes 18,75€, e assim por diante. Porém, o que os keynesianos aparentemente ignoram é que, se tal sequência de gastos realmente ocorresse, tudo o que existiria na economia seria uma soma de gastos em consumo e nada mais.
No entanto, a maior parte dos gastos no sistema económico assenta numa fundação de poupança. O vendedor das camisas irá provavelmente poupar e gastar produtivamente uns 95€ ou mais 1) comprando novas camisas para repor seu stock, 2) pagando aos seus empregados e 3) fazendo outras compras necessárias para a manutenção e gestão do seu empreendimento. Os 5€ que sobram talvez sejam tudo o que ele possa gastar em consumo próprio. O mesmo é válido para a) os seus fornecedores; b) para os fornecedores destes fornecedores; e c) para os fornecedores destes últimos fornecedores, e assim sucessivamente.
Atesouramento versus Poupança
Quando algum atesouramento ocorre — ou, mais correctamente, quando há um aumento na procura de dinheiro para ser mantido em caixa – não é porque as pessoas decidiram poupar. O que está a acontecer realmente é que as empresas e os investidores decidiram que precisam de alterar a composição da poupança que já acumularam, aumentando a quantidade de dinheiro e diminuindo as suas aplicações e investimentos noutros activos.
Por exemplo, um indivíduo pode decidir que, em vez de aplicar 90% da sua poupança total em acções e em outros instrumentos financeiros e ter apenas 10% em dinheiro na conta-corrente, ele precisa aumentar o dinheiro em caixa para 20 ou 25% da sua poupança.
Da mesma forma, uma empresa pode decidir que precisa aumentar o seu dinheiro em caixa em relação a outros activos de modo a estar melhor preparada para honrar os seus compromissos. Isso acontece normalmente no início das recessões, quando o crédito se torna escasso (por causa do aumento dos juros) e as empresas descobrem que não podem contar com mais empréstimos para pagar as suas contas.
Além disso, os aumentos do dinheiro em caixa que ocorrem em tais circunstâncias não representam um acréscimo à poupança, uma vez que ocorrem num ambiente de declínio acentuado da quantidade total de poupanças acumuladas. Por exemplo, o aumento da procura de dinheiro em caixa que ocorreu após o início da crise financeira deu-se em reacção à enorme queda nos mercados imobiliários e de acções, à bancarrota de várias empresas de tamanho considerável, e a enormes prejuízos apresentados por bancos e outras instituições financeiras.
Tudo isto representa uma redução nos valores dos activos, isto é, no valor da poupança acumulada. As pessoas vendem activos e aumentam o seu dinheiro em caixa de modo a evitar mais perdas. É claro que essa ampla conversão de activos em dinheiro provoca ainda mais declínios no valor das poupanças acumuladas, uma vez que a fuga desses activos reduz os seus valores.
Depressões e Expansão do Crédito
A perda de poupanças acumuladas está no cerne do problema das depressões económicas. Recessões e depressões, bem como os prejuízos que as acompanham, são resultado da tentativa de criar capital não através da poupança, mas por via da expansão do crédito. Expandir o crédito significa que o sistema bancário está a criar, a partir do nada, quantidades adicionais de dinheiro para serem emprestadas a pessoas e empresas. Tudo isto é feito com o apoio e a protecção do governo e do banco central. O dinheiro assim criado e emprestado aparenta ser capital novo e adicional, mas não é.
O facto de aparentar ser capital novo e adicional cria uma falsa e exagerada noção a respeito da quantidade de capital que está disponível para sustentar a actividade económica. Assim como um indivíduo que acredita ter ficado mais rico no decorrer de uma bolha financeira, e é levado a adoptar um padrão de vida muito além das suas capacidades, as empresas são persuadidas a empreender projectos que estão muito além dos meios disponíveis na economia.
Para um consumidor individual, a compra a crédito de um imóvel ou de um automóvel, sob a ilusão de que ele está mais rico do que realmente é, irá mais tarde transformar-se num prejuízo quando os preços e, consequentemente, os juros começarem a subir, o crédito a escassear, a economia entrar em recessão e ele finalmente se aperceber que, na realidade, não tem como pagar as prestações, e que teria sido melhor ele não se ter endividado. Da mesma maneira, os empreendimentos das empresas, seja a abertura de novas lojas, ou a aquisição de outras empresas levadas a cabo sob a ilusão de uma súbita abundância de capital, acabam por revelar-se fonte de grandes prejuízos quando essa ilusão de abundância de capital se evapora.
A expansão do crédito também estimula uma redução artificial na procura de dinheiro em caixa, algo que irá, precisamente, preparar o terreno para o futuro aumento da procura acima explicada. A redução da procura de dinheiro em caixa ocorre porque, enquanto existe expansão do crédito, existe a possibilidade para as empresas de contraírem empréstimos baratos e rentáveis, de modo que substituem o dinheiro em caixa pelo crédito. O aumento das vendas resultante do gasto do novo dinheiro também encoraja o aumento dos inventários como substitutos de dinheiro, uma vez que podem ser liquidados de forma rápida e lucrativa.
Recessões e depressões são o resultado da perda do capital que foi desperdiçado tanto em investimentos insustentáveis como na explosão consumista que resultam da expansão do crédito. As perdas são adicionalmente amplificadas pelo aumento da procura de dinheiro em caixa subsequente. E podem ser ainda mais intensas caso haja uma redução da quantidade de dinheiro na economia, algo que pode ocorrer caso os prejuízos sofridos pelos bancos resultem em perdas sobre os depósitos (algo que, no sistema bancário de reservas fraccionárias, gera uma redução múltipla na quantidade de dinheiro disponível na economia). Essa redução da quantidade de dinheiro na economia faz com que pessoas e empresas endividadas tenham ainda mais dificuldade para pagar as suas contas.
Conclusão
Desde o início da crise financeira, as poupanças acumuladas no sistema económico foram desvalorizadas em vários triliões (nomenclatura americana) de dólares e é extraordinário que, no meio de tudo isto, muitas pessoas, incluindo a maioria dos economistas profissionais, receiem a poupança e achem que, pelo contrário, é necessário estimular o consumo. Tal é a completa falta de compreensão económica que prevalece.
Seria de esperar que um grupo de pessoas como os economistas modernos, que se orgulham do seu empirismo, verificasse de vez em quando os dados factuais do mundo em vivem, e que, no decurso de perdas de triliões de dólares de poupanças acumuladas, começassem as suspeitar que existisse a necessidade de as repor em vez de fazer tudo o possível para evitar a sua substituição.
Este artigo é uma tradução de um texto de George Reisman cujo original em inglês pode ser encontrado aqui e foi publicado originalmente no Mises Brasil com outro título.
Referências:
- Jack Healy, “Consumers Are Saving More and Spending Less,” February 3, 2009, p. B3. ↩︎