Enquanto os cristãos de todo o mundo encaram a celebração como um modo de recordar a encarnação de Cristo, alguns descartam-na como uma versão cristianizada da Saturnália da Roma antiga. Seja qual for a posição de cada um, sugiro humildemente que a data deve ser utilizada, tanto por cristãos como por não-cristãos, como ocasião de reflexão sobre o choque entre dois reinos e duas formas de governo: uma que abre caminho à vida, e outra à miséria, ao sofrimento e à morte.
Se a celebração do Natal constitui um reconhecimento da oferta, por parte do Todo-Poderoso, de paz e boa-vontade a todos os homens, então cumpre a todos recordar quem é que oferece a guerra universal e a má-vontade. Nenhuma outra instituição terrena tem oferecido esta última com tamanha constância como o estado. A própria narrativa do Advento recorda-nos, no segundo capítulo do Evangelho segundo Mateus, que foi um agente do estado, Herodes, quem procurou extinguir o Príncipe da Paz ainda na sua infância. Verdadeiramente, o estado odeia todos quantos representem um desafio às suas pretensões de omnisciência e omnipotência.
No Ocidente, é seguro afirmar que a maioria das reuniões natalícias não inclui um reconhecimento intencional do nascimento de Jesus. Ainda assim, também estas podem servir, pelo menos, como lembretes da desnecessidade do estado. As nossas redes de família, amigos e colegas de trabalho, que oferecem palavras e actos de generosidade, bondade e hospitalidade, são lembretes legítimos de que as associações voluntárias se encontram no centro da boa vida. Estas interacções são, de facto, anárquicas, apátridas e livres de ameaças de violência (a menos que o tio Zé Manel beba demais).
Qualquer que seja a forma que uma versão secularizada da celebração do Natal possa assumir, os simples actos de troca de presentes, de partilha de comida e bebida, e de um sentimento de parentesco podem produzir — no mínimo — uma reflexão sobre a bondade da actividade produtiva que permite tal fruição. Este sentimento encontra-se abundantemente expresso nos comentários de Ayn Rand acerca da celebração americana do Dia de Acção de Graças como uma “celebração da produção bem-sucedida”. É esse acto voluntário de empreendimento produtivo que nos oferece a oportunidade de nos alegrarmos com a experiência das dádivas da actividade produtiva, mesmo apesar dos esforços do estado para a esmagar, ou, no mínimo, para nela intervir favorecendo uns à custa de outros.
Quanto a mim e à minha casa, temos encarado as celebrações natalícias como uma pausa intencional para reflectir sobre os diversos significados do Advento de Cristo. Certamente, ponderamos os temas da misericórdia, da graça e do amor que são prodigalizados às criaturas de Deus através do Verbo feito carne. Contudo, como sucede com todos os relatos das palavras e acções que rodeiam a vida de Cristo, há múltiplas lições das quais as pessoas de boa-vontade podem sair enriquecidas. São as nossas tradições e práticas que podem servir para fazer emergir essas lições.
Tendo isto em mente, é um triste estado de coisas reconhecer que a maioria dos cristãos não consegue perceber os profundos sentimentos anti-estatais apresentados na narrativa da Natividade. Quer se trate de uma incapacidade de reconhecer o contraste profundo entre o Reino de Cristo e os reinos dos homens, quer de um vago sentimentalismo que se apodera da mente dos crentes, não o sei. Sustento, contudo, que os hábitos de pensamento podem ser forjados por meio dos hábitos de acção. Em reconhecimento disto, cultivámos várias práticas regulares que reconhecem a natureza anti-estatal do verdadeiro culto cristão.
Na procura de formas práticas de recordar o significado anti-estatal que envolve o nascimento de Cristo, o nosso lar adoptou a tradição de recontar os factos relativos à Trégua de Natal de 1914. Em alguns anos, isso incluiu a visualização do filme de 2005 Joyeux Noël. Noutras ocasiões, recordámos a troca de presentes entre soldados na frente ocidental, fazendo circular uma preciosa lembrança de família: uma caixa de latão oferecida pela Princesa Maria aos soldados do Império Britânico. Uma outra forma de recordação tem sido a recitação de uma ou duas breves passagens de Silent Night, de Stanley Weintraub, enquanto meditamos sobre a relutância de homens comuns em assassinarem-se mutuamente (pelo menos durante um dia) em nome do estado.
O propósito de cada uma destas práticas tem sido sondar as nossas mentes e corações para identificar a nossa lealdade última. Ao levantar esta questão, a minha intenção é recordar à minha família que é nosso dever, enquanto adoradores do Rei dos Reis, desafiar os tiranos da terra, tal como os Reis Magos de Mateus 2 desafiaram directamente a ordem de Herodes quando compreenderam a sua intenção maligna. As suas acções são, certamente, uma ilustração adequada das palavras do teólogo cristão Francis Schaeffer: “Resistir à tirania é honrar a Deus”.
Seguramente, os últimos anos apresentaram amplas oportunidades para que os cristãos no Ocidente desafiassem tiranos e os seus éditos arbitrários. Enquanto alguns falharam em cumprir o seu dever cristão, outros desafiaram fielmente as diversas formas de covid-ocracia, levantaram as suas vozes em condenação do belicismo e do complexo militar-industrial, ou do clientelismo desenfreado que caracteriza o chamado capitalismo moderno. Em última análise, todas estas formas de resistência e protesto constituem um afrontamento ao estado e, enquanto tais, são uma honra a Cristo. Que estes esforços prossigam com ousadia.
É por causa deste registo misto de cobardia e coragem cristãs que sugiro olhar de novo para o Natal. Nesta quadra, não é suficiente pensar apenas em como o cristão individual pode recorrer à benignidade de Deus em Cristo para se reformar, ou em como o não-crente pode demonstrar um vago sentimento de generosidade e bondade. Que inclua sempre um apelo à coragem para todos, recordando que a resistência, mesmo dos mais humildes, ao poder do estado é uma oferta preciosa ao Rei dos Reis e proporciona melhores condições para o florescimento humano. Ademais, que sirva como lembrete de que os governantes do estado odeiam genuinamente e procuram destruir tudo o que procede do Príncipe da Paz.
Ao adoptar esta abordagem, tanto cristãos como não-crentes podem encontrar consolo em saber que as suas próprias associações voluntárias (religiosas ou outras), o trabalho produtivo, as celebrações de descanso e os actos quotidianos de caridade servem como instituições fundamentais que se opõem às depredações malignas do estado. Que tais práticas se tornem cada vez mais fortes, e que a simples enunciação da expressão “Feliz Natal” sirva para recordar aos adoradores do estado que os seus deuses e as suas tradições são verdadeiramente antitéticos a toda a vida humana e, como tal, completamente desnecessários.
Artigo publicado originalmente no Mises Institute.
